Artigo: Cultura do ódio, a violência nossa de cada dia

Qual sentido em discutir e divulgar de modo sensacionalista um crime depois que ele já foi cometido? Por não ser detetive, nem médico legista, a melhor maneira para dissecar a violência é regredir nos milhares de “pequenos” crimes cometidos de maneira sutil, muito antes do gatilho ser disparado. Não há maior violência que a própria cultura da violência, mais nociva que a bomba atômica.

Por Toni C.*

“A reconstituição do crime deve ser feita anos antes” (GOG).
Quando falamos em cultura de violência, para muitos a primeira coisa que venha à mente talvez seja logo o funk pankadão com sua batida seca e mensagem direta, com papo reto. Mas o funk não é violento quando comparado à realidade onde essa cultura sobrevive. O fluxo, o rap, o samba e a cultura que vem do morro não são nem devem ser associados com as causas da violência. A violência vem da cultura do ódio dos subterrâneos muito mais profundos na escala moral, o ódio tem berço reluzente. Submerge transvestido de piada bem humorada, de jornalismo implacável, arte elitizada, chargistas libertários, se apresenta sob o álibi de pregarem a liberdade de expressão, doa a quem doer.

Essa cultura que destila ódio não é arte, mas é cultura que se dissemina de maneira infecto contagiosa por todas as classes sociais, por todas as cores, sem distinção de gênero ou idade.

Antes de alguém questionar sobre a tão falada cordialidade do povo brasileiro, é preciso dizer que a cultura do ódio também não faz acepção de nacionalidade. Com música podemos fazer uma rápida incursão pela nossa história.

Brasil, “Terra cujo herói matou um milhão de índios” (Racionais MC’s).

Um dia desses fui convidado para participar de uma conferência de jovens em um município da grande São Paulo. Ao entrar na cidade as boas vindas são dadas por uma placa que estampa com orgulho: “Bem vindo a cidade de Santana de Parnaíba, o berço dos bandeirantes”. A náusea só me deixou após recitar os versos para o público que ia dos mais jovens ao prefeito da cidade:

“Bandeirantes, Anhanguera, Raposo, Castelo
São heróis ou algoz? Vai ver o que eles fizeram
Botar o nome desses cara nas estrada é cruel
É o mesmo que Rodovia Hitler em Israel” (Inquérito).

Nunca é demais lembrar, nossa nação foi “A última a abolir a escravidão” (Racionais MC’s).

E desde então vivemos em um estado de guerrilha permanente, passando pela Balaiada, Praieira, Revolta da Chibata, Lanceiros Negros, Sabinada, Revolta dos Malês (…). Ouça o álbum Manifesto Popular Brasileiro: “Aproveito para citar Manoel Calafate, Pacifico Licutan, isso sim que é banbanban e ainda tem o Belchior, diz que lutar é bem melhor” (Face Da Morte).

Estamos submetidos a uma velocidade de 25 cenas de violência por hora na televisão brasileira, somente em programas infantis, assim a baba eletrônica inicializa nossas crianças ao adorável mundo da violência.

“Também morre quem atira” (O Rappa).

Ao mesmo tempo em que desenhos animados ferem, o grupo musical CTS Kamika-Z teve seu material proibido de qualquer veiculação, por qualquer meio, inclusive internet, determinado pela Juíza Juliana Miranda Pagano da 3º Vara Criminal da Comarca de Uberaba em Minas Gerais. A notificação digna do período da inquisição foi encaminhada há um mês para o principal portal de rap do país pouco depois de um vídeo onde policiais forçam sob ameaça o integrante do grupo Ananias a fazer de forma contrariada, elogios à polícia, “Tenho a falar que a polícia de Minas age certo”, o interlocutor sem aparecer no vídeo constrange: “Cê acha que eu tenho medo de você? De um bosta igual você?”. Para não deixar dúvidas que o aperto é uma perseguição ao grupo por suas músicas o policial continua: “Ninguém aqui se esconde atrás da farda não, você que se esconde atrás dessa musiquinha lixo seu” (sic). A própria decisão judicial adianta não se tratar de censura prévia.

Para o advogado Marcos Verenhitach, “O MC é um poeta, que denuncia aquilo que ele entende estar errado.” Ele chama atenção para a seletividade do sistema penal em sua tese sobre a co-cupabilidade e lembra que o Eu lírico no rap é por vezes acusado e imputado como crime, como já aconteceu com o videoclipe do Facção Central, MV Bill ou em shows do rapper Dexter ou do grupo Racionais MC’s. “Outra obra literária escrita por um presidiário, cujo teor da história [semelhante ao gangstar rap ou ao funk proibidão] retrata o cotidiano numa prisão, é Memória da Casa dos Mortos, de Fiódor Dostoiévski”, acrescentaria à lista Vigiar e Punir, de Michel Foucault e o que dizer de Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos? Devemos também censurar e impedir a circulação destes clássicos da literatura mundial? Pois então que façamos o mesmo com os filmes, os desenhos e os jogos violentos. A discriminação, e a criminalização que atinge os mais pobres, não pouparia sua produção artística (para saber mais).

“Todo homem é culpado pelo bem que não fez” (Voltaire).

Nesta guerra do ódio, um dos refúgios favoritos onde os fascistas se escondem é a trincheira do humor. Uma camuflagem muito utilizada para disseminar racismo, machismo e xenofobia.

O suposto comediante Danilo Gentili foi processado por ter afirmado que o ex-presidente Lula forjou o atentado à bomba contra o seu próprio instituto. Gentili fez o óbvio, se refugiou com seu ódio em seu disfarce de “comediante” e alegou que tudo não passou de uma “piada”.

Qual relação tem esta frase: “Não estupro porque você não merece” comparada com esta: “Mulheres feias deveriam agradecer caso fossem estupradas, afinal os estupradores estavam lhes fazendo um favor, uma caridade”, tente adivinhar qual é a piada. A primeira foi o insulto proferido no Plenário da Câmara pelo deputado Jair Bolsonaro à deputada Maria do Rosário, a segunda foi publicada pelo “humorista” Rafinha Bastos, o mesmo que se referiu à gravidez de Wanessa Camargo desta maneira: “Eu comeria ela e o bebê” [sic]. Bolsonaro acaba de ser condenado e terá de indenizar a deputada por agressão verbal.

“Enquanto a Ku Klux Klan bate panela na Paulista” (Flávio Renegado).

O rapper Emicida se manifestou em relação a personagem Adelaide do programa Zorra Total, uma mulher negra, pobre, desdentada, que anda pelos vagões de um trêm pedindo qualquer “50 centarru” sem abrir mão de seu tablet e jogando pragas aos que não colaboram com o bordão: “Só quero que Deus ilumina cada canto dos seus caminhos”. O programa foi descontinuado no início do ano. “Estamos em um momento delicadíssimo na história do Brasil. Discute-se sobre o racismo na obra de Monteiro Lobato, cria-se um plano de prevenção a violência contra a juventude negra, porém um ataque contra a etnia que mais trabalhou por este país passa despercebido desta forma, como uma piada, o mesmo tipo de piada que foi hospedeira durante todos estes séculos da doença que é o racismo (e só o dono da dor sabe o quanto dói)” refletiu em nota o rapper.

“Meu cabelo duro é assim, cabelo duro de pichaim” (Chiclete com Banana).

O programa da TV Globo saiu do ar, mas veja se esse “humor” estilo Zorra Total não se materializa na vida real, mesmo no ambiente universitário, em que estudantes brancos, ou que pensam ser, pintam o rosto com tinta preta para trotes como o da Federal de Minas Gerais em que uma jovem foi fotografada acorrentada e com um papelão escrito: “Caloura Chica da Silva”. Ou no caso onde quatro garotas pintaram o rosto com tinta preta e divulgaram a foto nas redes sociais com o título, “BlackFace”, e as hastag #negritude, #pestenegra, nos comentários o deboche continua: “inclusão social ahahaha” (sic). Ao rebater a critica de uma outra estudante exigindo respeito mais ironia e insultos “Querida, sei porque ficou tão ofendida e brava comigo, você é gorda e namora um negro, sendo assim deveria mesmo se sentir ofendida, compreendo” (sic). As estudantes são do curso, pasmem, de Medicina na Uniara, isso mesmo: me-di-ci-na(!).

Com estes exemplos de intolerância vindas da academia, é mais fácil entender a comitiva que médicos cubanos tiveram ao chegarem ao Brasil, ou a complascência na exposição pública de um garoto negro, sem roupas, violentado, amarrado a um poste. Para a apresentadora do telejornal, “um marginalzinho” que lançou uma campanha aos que se apiedaram: “Faça um favor ao Brasil, adote um bandido”. Resta ao deputado federal Marcos Feliciano demonstrar todo seu entendimento em diferenciar o negro e o homossexual: “Negro é negro e não pode mudar, diferente dos homossexuais”, o parlamentar evangélico decreta: “Aids é um câncer gay”.

“Eh! Meu amigo Charlie Brown” (Benito di Paula).

Tinha que ser o Charlie, para demonstrar que o insulto e intolerância é uma cultura disseminada por todo o mundo, o caso do jornal Judaico-francês é emblemático ao afrontar mulçumanos com charges do profeta Maomé, segundo o Islã é uma grande ofensa tentar retratar Maomé em ilustrações, na publicação o jornal estampa em sua capa o profeta despido e de quatro o que resultou no trágico atentado com 12 mortos. Agora o mesmo jornal volta a ser repugnante com a charge do menino sírio encontrado morto afogado na praia, “Tão perto da meta”, diz a legenda, o menino símbolo da resistência dos refugiados teria fracassado na tentativa de alcançar à Europa por ser mulçumano. Um fracassado.

Entenderam a piada? Pois não há graça alguma, apenas ódio e xenofobia.

“Corta pra mim” (Marcelo Rezende).

No telejornalismo tragédias, mortes e violência são temas banalizados, servidos para serem digeridos na hora do café da manhã, do almoço e do jantar, sem antiácido. A espetacularização da morte e da violência vem com cobertura de opiniões como se âncoras fossem juízes e suas condenações sumárias são transmitidas em sonoros bordões que ocupam a consciência popular: “Tudo anormal”, “Me dá imagens”, “Aqui tem café no bule”, “Corta pra mim”, “Isto é uma vergonha”.

Se a maioria da população concorda com o tratamento punitivo diferenciado para uma parcela da população, mais pobre, mais negra, mais excluída e menos alfabetizada, o que nos impediriam de ter opiniões contraria a redução da idade penal?

No futebol as bárbaras brigas entre torcidas rivais, por vezes resultam em mortes. Não é por acaso que a façanha de atingir pela TV mais de 1 bilhão de casas em mais de 150 países é alcançado pelo esportes que mais cresce no mundo todo, o MMA. Diferente do boxe, do Karatê ou de esportes coletivos, essa modalidade de luta traduz mais fielmente o espírito de nosso tempo. Afinal estamos falando do combate sem regras, do show de violência e agressão física chamado “vale-tudo”.

“Joga pedra na Geni” (Chico Buarque).

No vale-tudo da vida real é permitido linchar uma mulher de 33 anos desfigurando seu rosto, arrastando-a pela rua, e provocando traumatismo craniano que a levaram a óbito por boatos espalhado nas redes sociais de que se tratava de uma sequestradora.

O Brasil figura na vergonhosa lista dos países que mais lincham no mundo, são quatro tentativas de linchamento diárias. O que dá combustível para uma senhora levar uma placa em uma manifestação em que lamenta: “Porque não mataram todos em 64?”, ou o advogado ex-candidato a deputado pelo PSDB que ameaçou, “Arrancar sua cabeça e fazer um memorial”, e ainda um Senador do mesmo partido dizer preferir, “Ver a Dilma sangrar” até o final.

A violência é uma maneira tão única para definir nosso cotidiano que obras de ficção cinematográficas como Tropa de Elite e séries de TV como Narcos se tornaram obrigatórias para entendermos nosso tempo. A ponto da critica poder questionar o que seria da carreira do consagrado cineasta José Padilha, sem a violência eminente? Ou o que há em comum entre o Capitão Nascimento e Pablo Escobar além do ator Wagner Moura, que interpreta a ambos? Talvez seja a prova que a violência surge igualmente do mocinho e do bandido.

“A lei de Gerson é nosso evangelho” (Gabriel O Pensador).

A cultura do ódio é fascista, ou seja, ela tem como principal fundamento o individualismo extremo que prega ordem de tradição, mas contraditoriamente se opõe as instituições estabelecidas porque as consideram permissivas com desordeiros, drogados, criminosos, políticos corruptos.

Como você definiria uma pessoa do povo que segue opiniões feitas de lugares comuns que aparecem aos seus olhos como profundamente morais e ordeiras, justamente aquelas que indivíduos da elite fascista pregam? A definição clássica para esta prática política é lúmpen nas periferias este sujeito é chamado de Zé Povinho.

Muito antes do gatilho ser disparado, do soco ser desferido, do crime ser executado, há uma oficina que cria, incentiva, valoriza e banaliza a violência, acredite a letalidade começa pelo cérebro.

Por tudo isso a mãe de todas as batalhas é a batalha das ideias.
E nessa luta, sou apenas um franco atirador.

Plow!

* Autor dos livros: Sabotage – Um Bom Lugar, e do romance “O Hip-Hop Está Morto”, membro da direção da Nação Hip-Hop Brasil, diretor de cultura da ORPAS e diretor do coletivo LiteraRUA, também é integrante do Portal Vermelho.

 

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